
Esta é a quarta edição da revista Coniunctio. Como seu próprio nome indica, o Ichthys Instituto de Psicologia Analítica pretende, por meio de seus professores e alunos − e à luz de um sempre renovado olhar − rever aquilo que os antigos alquimistas chamavam de arte e que a psicologia analítica chama de processo. Tais autores já pressentiam a presença de uma dynamis filosófico-religiosa nos caminhos dessa arte, mas ainda não utilizavam os termos psíquicos que a psicologia profunda veio inserindo ao traduzir a sua linguagem simbólica em uma nova linguagem do inconsciente.
O problema central de todo o conhecimento que hoje se busca revigorar à luz de um novo olhar − a cada texto, a cada releitura associada às mesmas e eternas experiências − é o como da realização de um processo individual, parte fundamental do autoconhecimento. Nesse sentido, a finalidade do Ichthys e de seus alunos e professores é, por meio de cursos de extensão, seminários, jornadas, workshops, simpósios, cursos de pós-graduação etc., ampliar e aprofundar os caminhos da busca do conhecimento e do autoconhecimento. Os programas nas áreas de Psicologia Analítica, Filosofia, Religião e Arte buscam mobilizar as autênticas possibilidades de expressão da alma humana e do espírito criativo.
De forma experiencial e não estritamente acadêmica, as atividades do ICHTHYS objetivam despertar a sensibilidade, a criatividade e a autenticidade dos que estão comprometidos com a sua própria busca interior de modo ético e edificante. Acreditamos que a educação abrange o reconhecimento e a possibilidade do desenvolvimento da personalidade, até que se cumpra sua singular designação: tornar-se um indivíduo.
A capa desta edição foi inspirada na série chinesa Ashes of Love (As cinzas do amor), no instante em que a heroína se lança, em ato de sacrifício máximo, no ponto em que se enfrentam as forças do céu e do inferno. A força do céu é representada pelo Imortal da Noite, Run Yu, um dragão branco (Luo Yunxi), enquanto que a força do inferno é representada pelo Imortal do Fogo, Xu Fen, também um demônio (Deng Lun). Jim Mi é a figura feminina, ânima, nascida de uma trágica história de amor entre o Imperador Imortal e uma Fada Floral. Seu nascimento faz com que se desencadeiem todos os eventos de uma trama arquetípica, lembrando a todos nós que tramas arquetípicas repetidamente ocorrem em nossas vidas, com maior ou menor intensidade.
Com uma produção de arte monumental, envolvendo cenários e música, a trama é baseada no romance de Heavy Sweetness, Ash Like Frost, e conta histórias de amor entre as divindades (arquétipos) que compõe o inconsciente coletivo, bem como suas possibilidades de encarnação no humano em certas etapas da vida e de acordo com a individualidade de cada pessoa.

A psique existe, ainda que não numa forma física, e na psicologia analítica é de fundamental importância o conhecimento de uma primeira antinomia básica: a psique depende do corpo e o corpo depende da psique. Devido às sutilezas desse discernimento, é comum o pensamento de que os acontecimentos psíquicos são unicamente produtos arbitrários ou invenções da consciência e que os conteúdos do inconsciente não são mais do que opiniões, ilusões ou conjecturas fantasiosas. No entanto, o fato é que certas ideias, imagens e emoções ocorrem em todas as épocas de modo espontâneo e, não sendo criadas pelo indivíduo, irrompem na consciência individual ao modo de fantasias, mitos, contos de fadas, sonhos e visões.
Ao tratar dos sonhos, Jung propôs classificá-los como pequenos sonhos (ou sonhos comuns) e grandes sonhos (sonhos arquetípicos), sendo possível uma interligação entre os dois modos de apreensão do sonho. Os sonhos, dos quais alguns exemplos significativos são tratados nesta revista, são portadores da voz do desconhecido em nós. A voz pode ser uma imagem, um cheiro, um toque ou, literalmente, um som sem imagem. Ao aparecer nos sonhos, a voz pode trazer tendências imprevistas, perigosas, e incontroláveis revelações; as profecias. Exemplo disso, nos lembra Jung, é o de Oséias, que recebe de Deus a ordem de casar-se com uma mulher pública para obedecer à ordem do Senhor; ao ego parece um absurdo obedecer (saber ouvir) um comando da voz interior como esse. Dada a sua importância, o fenômeno da voz nos sonhos nos sonhos e visões será tratado de modo especial.
Ao estudar amplamente a função dos sonhos e sua influência na vida do homem, Jung cita um tratado da Idade Média em que Benedictus Pererius, S.J., assim os apresenta: “Com efeito, Deus não está ligado às leis do tempo e não precisa de ocasiões determinadas para agir, pois inspira seus sonhos em qualquer lugar, sempre que quiser e a quem quiser” (JUNG, 1980: 32)[1]. Examinando e investigando os sonhos, Pererius classificou-os: “muitos são naturais, vários são humanos e alguns podem ser divinos” (idem, ibidem). É desse modo então que os sonhos são entendidos: como enviados por Deus, como uma concessão ou um dom especial do sonhador, e é o próprio sonho que revela sua veracidade e até mesmo sua interpretação. No entanto, a esta compreensão agrega-se a afirmação de que a arte da interpretação dos sonhos está reservada “às pessoas dotadas, ex officio, com o donum spiritus sancti” (idem, ibidem). Assim, é significativo indagar se o sonho extrai seu material dos conteúdos conscientes, ou se devem ser entendidos como fontes de informações e tendências do inconsciente profundo que tocam os limites do religioso.
Em 1999, a editora Vozes publicou um relevante estudo sobre o tema, o livro O Elixir vermelho…muitos falam de amor…, de Sonia Lyra[2]. Entre mais de dois mil sonhos de uma mesma sonhadora, foram selecionados 178 sonhos, todos eles entendidos como grandes sonhos e por meio da análise dessa série de sonhos é possível constatar a realização do processo de individuação da sonhadora. É próprio da psicologia analítica não interpretar sonhos isolados, pois, diz Jung, “via de regra, o sonho é parte integrante de uma série” (idem: 53), sendo provável que exista uma continuidade na expressão da cadeia de fenômenos inconscientes que chegam até a consciência.
É incomensurável a amplidão da psique inconsciente, que com frequência apresenta conteúdos de compreensão e saber superiores; o indivíduo por si mesmo é incapaz de produzir esses conteúdos, pois refletem a atividade espontânea e autônoma da psique objetiva. Os sonhos são, pois, constituídos de material do inconsciente coletivo, ou seja, ainda que preponderantemente individuais, uma vez que ninguém terá sonhos como os meus, ainda assim os problemas que apresentam são sempre idênticos revelando materiais mitológicos através de seus símbolos.
Um dos grandes símbolos que aparecem nos sonhos é o da coniunctio. A coniunctio traz consigo uma imagem apriorística em que “o amor tende a vencer os antagonismos, a assimilar forças diferentes, integrando-se em uma mesma unidade” (Lyra, 1999: 307), o que permitirá a realização de uma síntese dinâmica de suas virtualidades. Nesses estados de coniunctio, a consciência está liberta do passado e ‘des-pré-ocupada’ com o futuro, vivendo simplesmente no presente, pois na coniunctio a perspectiva temporal já não predomina e a relação verdadeira das coisas com suas infinitas possibilidades se revela. Aqui, o que gera e o que é gerado tornam-se um.
Todo esse processo de transformação pode ser constatado ao longo de séries de sonhos e visões, bem como da Imaginação Ativa; o processo é representado especialmente por símbolos de transcendência, como o voo dos pássaros – a exemplo de Simurg: o pássaro solitário do Sufismo −, e, segundo a lenda, é uma forma que os imortais adotam para falar (sem palavras) da leveza e da liberação do peso terrestre.
Falar sobre esses processos de transformação do homem natural em homem espiritual é certamente um privilégio, mas vivê-lo é indescritível de fato. Talvez o sonho, com sua plasticidade e emoção, consiga trazer alguma intuição quando o sonhador diz:
Sonhei que chego a um castelo, num lugar no interior e entro: é belíssimo. Vejo entalhes feitos à mão em paredes inteiras, em móveis. Chego a uma sala pintada em tons de azul e dourado de uma beleza que me fazem chorar … penso que a sala azul para meditação é tudo de que se precisa.
O sonhador chega a esse lugar no interior de si mesmo, entra e então experimenta algo de uma beleza extraordinária que o faz chorar. Que emoção é essa? Que impacto é esse que o sonho provoca? Os poetas e as orações que também acompanham os sonhos talvez ousem expressar com palavras, quando dizem: “Caminho sempre para ti com todo meu caminhar, pois, quem sou eu e quem és Tu só nós o compreendemos” (Lyra, 1999: 292). Comentando um sonho, a sonhadora faz alusão a esse estado:
Sonhei que Sou prisioneira da mais pura liberdade. Minha prisão não tem mais paredes, daí que não há fugas possíveis, pois não há para onde ir… as paixões parecem ter se diluído como sal na água. Não o amor. O amor é o ‘pano de fundo’ no qual flutua a pequena rolha, minha identidade.hego a um castelo, num lugar no interior e entro: é belíssimo. Vejo entalhes feitos à mão em paredes inteiras, em móveis. Chego a uma sala pintada em tons de azul e dourado de uma beleza que me fazem chorar … penso que a sala azul para meditação é tudo de que se precisa.
Tais comentários, que em geral o sonhador anota em cadernos de sonhos, são denominadas associações livres, e a ninguém os cabe julgar, se são verdadeiros ou falsos, se estão certos ou errados. A validade da interpretação que traz sentido é efetiva apenas para quem sonha. “É na realização da liberdade humana que radica a realização da essência humana e, com ela, a efetivação da presença oculta de Deus no íntimo do próprio homem” (Lyra, 1999: 293). Tal liberdade também é denominada apathéia, a qual é resultado imediato da coniunctio.
Sonia Lyra
Editora
[1] Jung, C.G. (1980). Psicologia da religião ocidental e oriental. OC, 11. Petrópolis: Vozes.
[2] LYRA, S.R. (1999). O Elixir vermelho…muitos falam de amor… Petrópolis: Vozes.
Para ilustrar a dança dos arquétipos, tal como se manifestam na trama de Ashes of Love, apresenta-se a seguir um sonho relatado por Jung em que o inconsciente parece pensar e preparar soluções. É o sonho de um jovem estudante de teologia:
Ele estava na presença de um velho bonito, todo vestido de preto. Sabia que era um mago branco. Este acabara de falar longamente com ele, mas o sonhador não se lembrava do que ouvira. Somente se lembrava das seguintes palavras: “E para isto precisamos da ajuda de um mago negro”. Neste momento abriu-se uma porta e um velho semelhante ao primeiro entrou, mas estava vestido de branco. Ele disse ao mago branco: “Preciso de teu conselho”, lançando um olhar interrogativo e de soslaio ao sonhador. O mago branco então falou: “Podes falar sem receio, ele é inocente”. O mago negro começou então a contar sua história. Ele viera de um país distante, onde ocorrera algo estranho. O país era governado por um velho rei que estava prestes a morrer. Ele – o rei – escolhera para si um túmulo. Pois naquele país havia um grande número de túmulos dos velhos tempos, e o rei escolhera para si o mais belo. Segundo a lenda, uma virgem nele estava sepultada. O rei ordenou que o túmulo fosse aberto a fim de prepará-lo para si. Mas quando os ossos foram expostos ao ar reanimaram-se subitamente, transformando-se num cavalo negro, que fugiu imediatamente para o deserto e nele desapareceu. O mago negro ouvira falar dessa história e logo pôs-se a caminho para seguir o cavalo. Depois de muitos dias seguindo os seus rastros, chegou ao deserto, atravessou-o até encontrar de novo campos verdes. Lá encontrou o cavalo pastando e descobriu alguma coisa, precisando por isso do conselho do mago branco. Encontrara as chaves do paraíso e não sabia o que fazer com elas. Neste momento emocionante o sonhador acordou (Jung, 2000: 71)[1].
O inconsciente coletivo precisa expressar-se por meio de imagens, como as que aparecem nesse sonho ou nas séries que estamos nos propondo analisar, trazendo representações formadas arquetipicamente. Como tal, o inconsciente coletivo
… é tudo, menos um sistema pessoal encapsulado, é objetividade ampla como o mundo e aberta ao mundo. Eu sou o objeto de todos os sujeitos, numa total inversão de minha consciência habitual, em que sempre sou sujeito que tem objetos. Lá eu estou na mais direta ligação com o mundo, de forma que facilmente esqueço quem sou na realidade (Jung, idem: 46).
Jung comenta que, perdidos de nós mesmos, devemos querer saber quem somos. “Para citar um exemplo: todos querem a paz e o mundo inteiro se prepara para a guerra” (Jung, idem: 49) e são os deuses afinal que lhes indicam os caminhos e o destino. Atuando por trás dos cenários do mundo, os deuses a que hoje chamamos de fatores, ou ainda de sintomas, geram continuamente a imprevisibilidade psíquica que nos aterroriza, sendo, portanto, o verdadeiro perigo que ameaça nossa existência.
Esse inconsciente, cenário de fundo da vida consciente, “contém a água viva, espírito que se tornou natureza, e por isso está perturbado” (Jung, idem: 50). Experiências com os sonhos mostram que um tesouro jaz no fundo do mar ou enterrado no campo. Alguns tentam encontrá-lo!
[1] JUNG, C.G. (2000). Os arquétipos e o inconsciente coletivo. OC, 9/1. Petrópolis: Vozes.